A criminalização da toga: um desserviço ao Brasil

Após lento processo de transição, o Brasil se reencontrou com a Democracia. Respirando ares democráticos, a Constituição de 1988 garantiu a mais ampla liberdade de expressão. A imprensa ganhou importante papel no cenário nacional. Logo, passou a investigar a atuação do Governo. Foi ela a grande responsável por dar publicidade às denúncias que levariam ao processo de impeachment, e já do primeiro presidente eleito diretamente após longos anos de regime ditatorial. O presidente da República Fernando Collor chegou a renunciar em 1992 para tentar escapar dos efeitos jurídicos da cassação, que era inevitável.

O Congresso Nacional também foi, e ainda é, alvo de intensa fiscalização da imprensa. Vários parlamentares foram cassados em processos políticos por quebra de decoro. E tudo a partir do jornalismo investigativo, da publicidade dada às acusações. Esse processo, benéfico ao regime republicano e democrático, tem também os seus inconvenientes. O sensacionalismo midiático acabou transformando político em sinônimo de corrupto. Não raros, programas de humor veiculam personagens caricaturados de políticos. Todos eles com a mesma característica: corruptos. É como se a política tivesse se transformado em um caminho sem volta para a corrupção.

Durante todo esse período, desacreditada nos políticos, ou seja, nos Poderes Executivo e Legislativo, a população passou a depositar todas as suas esperanças no Poder Judiciário. Este era um Poder composto por juízes probos, sérios, e que dificilmente se corrompem. Ao mesmo tempo, os políticos, criminalizados pela opinião do homem médio, nunca tiveram coragem de enfrentar o Poder Judiciário. O receio de represálias amedrontava até os mais corajosos, como sempre foi visível nas chamadas sabatinas dos candidatos a ministros – no atual período democrático, poucos nomes enfrentaram alguma resistência no Senado, e todos foram aprovados.

Pois bem, o Poder Judiciário se fortaleceu na Democracia, assumindo papel de relevo. Com o enfraquecimento das instituições, dos outros Poderes da República, a magistratura ganhou musculatura, e o Supremo Tribunal Federal se transformou no centro gravitacional do Brasil.

Mas o Poder Judiciário sempre encontrou um foco de resistência, pequeno que fosse. E havia quem não se conformasse que os tribunais, logo eles, fossem isentos das responsabilidades republicanas. Se os vereadores, deputados e senadores, bem assim os prefeitos, governadores e o presidente da República deveriam prestar contas à sociedade, sendo vigiados de perto pela imprensa, por que, então, o Poder Judiciário não deveria?!

A ideia tomou corpo, e criou ambiente para a aprovação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC n° 96/1992) que há tempos dormitava no Congresso Nacional, e pretendia a criação de um controle externo do Poder Judiciário. Os tribunais passariam a prestar contas, efetivamente, à sociedade. Não haveria mais espaço para os processos fictícios de prestação de contas perante os tribunais de contas. A Emenda Constitucional n° 45 foi finalmente promulgada em 08 de dezembro de 2004, sendo denominada Reforma do Poder Judiciário. Dela nasceu o Conselho Nacional de Justiça, uma das mais importantes vitórias da sociedade após a redemocratização brasileira.

A quebra de paradigma foi relevante. Um Poder composto por órgãos até então soberanos, como era o Judiciário e os seus tribunais, passaria a prestar contas a um órgão plural, formado por diversos segmentos da sociedade, com membros indicados pelo Congresso Nacional, pelo Ministério Público e até pela Ordem dos Advogados do Brasil. E por isso mesmo, muitos o consideram, ao ver do Supremo Tribunal Federal equivocadamente, um órgão de controle externo do Poder Judiciário.

O início de vida do Conselho Nacional de Justiça não foi, e continua não sendo fácil. Antes mesmo de ser publicada a Emenda Constitucional n° 45/04, a Associação dos Magistrados Brasilerios – AMB impugnou a constitucionalidade da reforma constitucional (Petição inicial da ADI 3367). Alegou, dentre outros fundamentos, que a criação do órgão de controle externo afrontaria a separação de Poderes. E alegou mais, que também haveria quebra do pacto federativo, mutilando a autonomia dos tribunais regionais e estaduais.

Apenas quatro meses depois da propositura da ADI 3367 pela AMB, o Supremo Tribunal Federal já julgava o seu mérito, declarando constitucionais as disposições da EC n° 45/2004 (Acórdão na ADI 3367). Cairia o mito de que o CNJ é um órgão de controle externo, passando a ser considerado como órgão superior do Poder Judiciário, e por isso parte das argüições de inconstitucionalidade eram improcedentes. A criação do CNJ recebeu o crivo do Supremo Tribunal Federal, que passaria a ceder o seu presidente para também dirigir aquele novo órgão.

Ultrapassada a discussão sobre a constitucionalidade da criação do órgão, o Conselho Nacional de Justiça foi finalmente instalado em 14 de junho de 2005. Mas, porque não foi contemplado por lei regulamentando-o, teve que recorrer a servidores emprestados, e ocupar área cedida pelo Supremo Tribunal Federal. O CNJ passou a exercer o seu papel constitucional mais sensível, acabar com a soberania dos tribunais. Reconhecendo a autonomia dos tribunais, haveria um órgão com poderes para controlá-los.

Todavia, desde 2005, o CNJ sempre sofreu controle sobre os seus excessos. Logo o Supremo Tribunal Federal teve que avisar, novamente, que o Conselho Nacional de Justiça era o órgão superior do Poder Judiciário, mas não exercia funções sobre o Supremo Tribunal Federal, que permaneceria acima deste.

Também não foram raras as manifestações do Tribunal Superior Eleitoral de se afirmar imune a atuação do CNJ. Isso porque em sua composição há seis ministros do STF, computando os três suplentes; porque tem na sua função administrativa (dirigir as eleições), que seria objeto de controle pelo CNJ, a sua missão principal, diferente dos demais órgãos que têm a jurisdição como a missão primeira; e por fim, por considerar que a própria EC n° 45/2004 não extinguiu a função da Corregedoria Geral Eleitoral, permanecendo nesta a competência máxima disciplinar.

A maior de todas as batalhas, porém, foi vencida pelo CNJ. O STF julgou procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 12, proposta para afastar os questionamentos sobre a constitucionalidade da Resolução CNJ n° 07. Essa foi a mais importante das resoluções do Conselho Nacional de Justiça. Foi por esta resolução que o CNJ proibiu a prática de nepotismo no Poder Judiciário. Os parentes dos magistrados ficaram proibidos de receber benefícios em razão do parentesco com os togados. Curiosamente, a ação foi proposta pela AMB, a mesma associação de classe que impugnara a criação do CNJ. Tamanha foi a vitória do CNJ no combate ao nepotismo, que logo os outros Poderes foram impedidos desta prática, através de concretização pela via judicial dos princípios constitucionais.

Seria possível, ainda, lembrar diversos outros questionamentos no STF sobre os limites da competência do CNJ. Apenas para citar algumas questões impugnadas ao longo dos anos, a uniformização da jornada de trabalho, a criação e o provimento de cargos de magistrados, o pagamento de verbas a servidores e magistrados, e a aplicação do teto constitucional. Aqui e acolá, o STF estancou os excessos do CNJ, ou ratificou os seus poderes.

No aspecto disciplinar, porém, abriu-se a questão mais sensível. Vários magistrados se acudiram no STF para verem respeitados os limites constitucionais de atuação do órgão de controle. As decisões neste campo, porém, foram conflitantes. Começaria uma grande batalha.

O Conselho Nacional de Justiça vem exercendo grande função no campo administrativo, criando metas de trabalho, policiando os tribunais quanto a eficiência na entrega da jurisdição e na gestão de seus orçamentos, uniformizando práticas administrativas, colaborando para o intercâmbio entre os tribunais, e abriu a cruzada de combate ao nepotismo. Mas, realmente, é no campo disciplinar que reside a maior expectativa da população.

Antes, pouco se falava de práticas de corrupção no Poder Judiciário. As representações disciplinares eram arquivadas, e não se tinha a quem recorrer. Após a criação do CNJ, os tribunais foram desnudados. Os processos disciplinares, antes analisados na camaradagem, passaram a ser observados pelo órgão de controle. Logo o CNJ passaria a avocar processos disciplinares, e não tardaria para afirmar-se competente, originariamente, para instaurar novos processos contra magistrados.

A depender da distribuição por sorteio no STF, uma verdadeira loteria, liminares eram concedidas ou denegadas em mandados de segurança. O objeto mais comum de impugnação é a denominada competência concorrente no campo disciplinar. A discussão está em saber se o CNJ só pode atuar como instância recursal das corregedorias, ou se pode instaurar direta e originariamente processos disciplinares.

Os debates foram se acirrando. Toda vez que o STF concedia uma liminar anulando julgamentos ou afastamentos de magistrados pelo CNJ a imprensa o criticava. O CNJ, então, ousou aprovar uma resolução afirmando expressamente a sua competência concorrente com as corregedorias no campo disciplinar. O que era apenas uma prática, e antiga, no órgão de controle, passou a ser disciplinado por um ato normativo primário, porque nascido no vácuo normativo. O Supremo Tribunal Federal nunca enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar para instituir o Estatuto da Magistratura, que deveria, a partir da EC 45/2004, disciplinar a atuação do CNJ. O Conselho Nacional de Justiça, então, aprovou a Resolução n° 135/2011.

Foi dada a senha e a oportunidade para a AMB, maior órgão de classe da magistratura nacional, e antiga opositora da criação do CNJ, propor no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, a ADI n° 4638. O ministro Marco Aurélio, que também foi relator de mandados de segurança em que concedera liminares para restringir a atuação disciplinar do CNJ, submeteu o processo à análise do Plenário, disponibilizando o processo em mesa para julgamento.

Nas vésperas do julgamento sobre o pedido cautelar, a ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, concedeu uma espécie de entrevista bombástica para a Associação Paulista de Jornais – APJ. Revoltada com a possibilidade de ver restringidos os seus poderes, a ministra afirmou que isso incentivaria a impunidade, pois evitaria o combate a “infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga” (Íntegra da entrevista pela APJ com a ministra Eliana Calmon em 25/09/2011).

A entrevista era o ingrediente necessário ao sensacionalismo midiático. “Bandidos de toga” era a manchete que estampava as capas dos principais jornais do Brasil, e era a chamada para a notícia de destaque na imprensa virtual. A expressão, deslocada do contexto, passou a ser usada para amplo apelo popular, atraindo os defensores da bandeira da moralidade para agirem em defesa do CNJ. Superada a discussão em torno da aplicação da Lei da Ficha Limpa para as Eleições 2010, a defesa do Conselho Nacional de Justiça passou a ser o mote central do combate à corrupção.

A magistratura nacional se dividiu, pendendo boa parte de seus integrantes a se expressarem contrariamente as duras declarações da ministra Eliana Calmon. Os próprios membros do Conselho Nacional de Justiça, após uma tensa reunião, divulgaram nota de repúdio veemente às acusações generalizadas contra a magistratura (Matéria publicada na ConJur em 27/09/2011).

O prejuízo já se fazia evidente. Criminalizaram o exercício da função judicante. Os juízes deixaram de ser homens probos e sérios, insuscetíveis à corrupção. O cidadão passou a enxergar na magistratura os mesmos defeitos de formação de caráter que vinha enxergando nos políticos.

Em meio a isso, o ministro Cezar Peluso, presidente do STF, resolveu não chamar o processo a julgamento, para a análise da medida cautelar requerida na ADI 4638. E após permanecer seguidamente na lista para julgamento, a ser apresentado em mesa pelo relator, chegou o recesso judiciário. Foi, então, que o ministro Marco Aurélio, relator, na última hora antes do recesso, invocou um dispositivo regimental e concedeu monocraticamente a cautelar, suspendendo, dentre outros dispositivos da resolução do CNJ, o que permitia a atuação originária no campo disciplinar (Íntegra da decisão do ministro Marco Aurélio na ADI n° 4638). A decisão deve ser submetida ao referendo do Plenário, que pode confirmá-la, negar o referendo, ou mesmo conceder a cautelar em maior ou menor extensão.

Foi nesse cenário que se encerrou o ano judiciário de 2011. O CNJ, os seus poderes de investigação, a competência para a instauração de processos disciplinares, e os tais bandidos de toga serviram de mote para a imprensa durante todo o período de recesso, que se iniciou em 20 de dezembro de 2011, e se encerra agora, dia 1° de fevereiro de 2012. O pior é que esse noticiário transbordou da imprensa especializada e ganhou as capas de toda a editoria nacional.

Alheio às discussões jurídicas em torno da competência disciplinar do Conselho Nacional de Justiça, e qualquer que seja a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação constitucional dos dispositivos da Emenda Constitucional n° 45/2004, já tem inegável prejuízo às instituições. A imagem do Poder Judiciário está extremamente desgastada. O cidadão já não tem certeza se pode confiar a sua vida, ou a sua causa, à pena de um juiz.

O objetivo seria resolver um debate constitucional, que poderia ser superado com argumentos jurídicos, como o foi ao tempo da criação do próprio Conselho Nacional de Justiça e a impugnação da Emenda Constitucional n° 45/2004 como um todo. Entretanto, preferiram o caminho do sensacionalismo, do apelo às frases de efeito. Frases que vendem manchetes de jornais, mas que são capazes de destruir imagens em segundos, especialmente em tempos de internet.

Serão necessários anos para que o Poder Judiciário resgate no cidadão a sensação de segurança e confiabilidade nas suas decisões. O mais grave de tudo, não podendo confiar no Poder Judiciário, o cidadão não tem mais em quem confiar. Prestaram um grande desserviço ao Brasil.

Os juízes estão no banco dos réus: criminalizaram a toga!

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RODRIGO PIRES FERREIRA LAGO é advogado, conselheiro seccional e presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MA. É membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), fundador e articulista do Os Constitucionalistas.

Foto: Roberto Giannotti/Flickr.

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