Da cronologia e do bom senso – Por Dra. Carolina Nabarro Munhoz – julho/2013

Fico pensando.  

Não basta querer ser juiz. O candidato se submete a um concurso de provas e títulos rigorosíssimo. Dificílimo. Isso é fato público e notório, certo?

Não basta se candidatar à cadeira de juiz ou simplesmente fazer uma prova de conhecimentos gerais. O concurso envolve várias fases, é analisado não apenas o conhecimento jurídico do candidato, mas sua vida pregressa, seu comportamento, sua conduta, sua reação diante das situações da vida (isso justificaria a entrevista individual), é investigado se ele teve alguma participação em alguma atividade ilícita ou antiética, afinal, como julgar esse tipo de fato em relação aos outros se a própria pessoa traz esse tipo de desvio em sua vida?

Todos os juízes passam por essa peneira. Ao decidir ser juiz sabem que terão anos de estudo pela frente em que terão que abdicar de todo o resto, terão que limitar festas, reuniões em família, viagens, lazer. Brinco que é mais que a escolha de uma carreira, é um casamento. Uma vocação. Um sacerdócio.

Mas depois de tudo isso, de tanto estudo, das privações, da seleção, o Estado seleciona aqueles que considera aptos a exercer a função de judicar em seu nome.

Pronto, somos juízes. O Estado, através de seus representantes, nos escolheu. Poderemos fazer diferença, ajudar as pessoas, solucionar os conflitos, pacificar as partes, decidir quem tem razão!

Vem a alegria, a sensação de plenitude, basta agora realizarmos um bom trabalho, estudarmos todos os casos com atenção, aplicarmos todo o conhecimento que possuímos que nada poderá dar errado.

E assim agimos. Seguimos dia após dia, apesar das dificuldades, muitas vezes da falta de estrutura física e humana, realizando nosso trabalho, mas o Estado, aquele mesmo que nos escolheu através daquele processo dificílimo, parece duvidar da nossa capacidade!

Mas espera aí Estado! Eu, Juiz, fui escolhido por você! Eu, Juiz, torno você presente nessa cadeira! Fui preparado para te representar! Se você não me julga capaz, por que me sentou aqui?

E de tempos e tempo vem alguma novidade que faz, nós, juízes sentirmos aquele frio na espinha, aquela sensação de: como assim, Estado, será que nosso relacionamento ainda tem futuro?

A novidade da vez é a alteração do Código de Processo Civil com o julgamento cronológico dos processos.

Se nós, juízes, somos preparados para julgar os processos que são trazidos até nós pelas partes, temos capacidade de verificar quais processos estão maduros para julgamento e quais processos devem ser julgados antes dos outros, certo?

Deveria ser assim.

Mas vem o Estado e fala: “Não, juiz, não confio na sua discricionariedade. Não confio no seu bom senso.”

Mas por que Estado?

Porque há processos mais novos julgados antes de processos mais antigos. Os processos devem ser julgados na ordem cronológica.

Não há sentido nessa afirmação.

Os processos são diferentes.

As pessoas são diferentes.

Os problemas são diferentes.

Direito não é matemática.

Direito não é questão de lógica.

Em Guarulhos, Comarca onde eu trabalho, temos cerca de trezentas iniciais por mês por vara cível. Não terei duas dessas iniciais comigo para serem julgadas ao mesmo tempo daqui há dois meses.

Pode ser que daqui a uma semana uma já seja julgada porque faltou algum elemento na inicial. Pode ser que daqui a um mês o autor desista de uma delas e eu possa fazer outra sentença ou possa haver um acordo para ser homologado e pode ser que daqui a um ano, uma delas ainda dependa de uma perícia para ser feita porque é um caso complicadíssimo de erro médico que não depende do juiz para ser julgada. E pode ser que essa do erro médico tenha sido a primeira das 300 que foram distribuídas nesse dia, primeiro que uma ação de cobrança que não vai exigir nenhuma prova e que poderia ser julgada antecipadamente em um mês, já com o réu citado. O juiz ficará esperando um ano para poder julgar 299 processos até essa ação estar em termos para ser julgada?

Ok. A ordem cronológica é para os processos que estejam em termos para julgamento, conclusos para sentença, mas ainda assim, os processos mais simples podem ser julgados em qualquer brecha que se tenha no meio de um dia atribulado de audiências, já um processo de muitos volumes, mais complexo, muitas vezes, só pode ser analisado no final de semana. Aqueles processos mais simples, aquelas sentenças simples que poderia dar um pouco de paz para as partes que estão aguardando uma resposta do Estado para seus litígios devem esperar até que aquele caso, aquela ação civil pública de dez volumes, por exemplo, que vai demorar dias para ser lida, possa ser analisada, para serem julgados? Isso parece justo?

Interessante como os juízes não são consultados em relação a alterações processuais que afetam diretamente o trabalho do juiz.

Os advogados, infelizmente, têm quase nenhuma noção do processamento do trabalho por trás do balcão. Seria interessante que fosse fase obrigatória do estágio nas faculdades seis meses dentro de unidades cartorárias judiciais como complemento do curso de processo. Isso tornaria o advogado parceiro e não adversário do juiz. Falaríamos a mesma língua porque isso faria o advogado entender porque uma petição pode demorar meses para ser juntada em um processo. Não por má vontade mas por total impossibilidade técnica (falta de mãos…).

Talvez eu devesse pensar menos.

Mas eu sou paga para pensar.

O Estado me paga para pensar. Passei nesse concurso difícil e concorrido por pensar. Não posso deixar de pensar e não posso prejudicar pessoas, aquelas que eu decidi ser juíza pensando em ajudar, que passam meses esperando por uma decisão, porque eu preciso esperar um processo que depende de várias outras fases para ser julgado, porque eu  preciso respeitar uma ordem cronológica do julgamento ao invés de usar o bom senso.

Estamos perto daquele momento em que vamos usar máquinas ao invés de pessoas para julgar. Deus nos proteja desses novos julgadores!

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